Tribunal das Mulheres Indígenas escuta testemunhos sobre violações de direitos e declara Estado brasileiro culpado!

Por SOS Corpo

Mais de 5 mil mulheres indígenas deixaram suas terras para atender ao chamado da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). Organizadas para fortalecer a liderança feminina indígena, elas levantaram acampamentos e tendas para imergir nos diálogos e ações políticas que compõem a programação da III Marcha de Mulheres Indígenas “Mulheres Biomas em Defesa da Biodiversidade pelas Raízes Ancestrais”, que está acontecendo em Brasília desde do dia 11 e vai até 13 de setembro.

Ontem, dia 11, enquanto acontecia a sessão solene em homenagem à organização das mulheres indígenas no Plenário da Câmara dos Deputados, as indígenas organizaram um Tribunal de Mulheres denunciando graves violações de direitos humanos que mulheres estão sofrendo por serem indígenas. Os Tribunais de Mulheres são uma elaboração metodológica criada pelo movimento feminista. Eles são processos de caráter ético-político e simbólico cujo objetivo é sensibilizar e chamar a atenção para os danos sofridos por mulheres em várias esferas da vida. Por motivos de segurança das testemunhas que estavam relatando as denúncias, o Tribunal não foi transmitido na internet. Por isso também os nomes das mulheres não serão citados neste texto.

As violências contra essas mulheres vão muito além do que está previsto na Lei Maria da Penha, cujo foco é restrito ao ambiente doméstico urbano. A violência doméstica nos territórios indígenas existe e foi cobrado do Estado meios de socorrer e proteger as mulheres que vivem nos territórios e, portanto, estão longe dos centros de denúncia e acolhimento. Entretanto as testemunhas relataram outras dimensões da violência contra mulheres que terminam em assassinatos não-previstos em lei e não reconhecidos como feminicídio ou sequer como violências. Foram denunciadas violações sexuais contra mulheres e meninas indígenas, submetidas sob uso de violência física a trabalhos em redes de exploração sexual. Crianças estão engravidando aos 8 anos, adolescentes estão com problemas de saúde mental e há um aumento no número de suicídios entre a população indígena. O aliciamento de crianças e adolescentes é um problema grave. Em muitos territórios há relatos sobre a invasão do universo de álcool e drogas entre indígenas, com uso abusivo por crianças e adolescentes.

Tribunal das Mulheres na III Marcha das Mulheres indígenas. Foto: Lúcia Martins/AMB.

Mais de uma testemunha relatou como a espiritualidade indígena está ameaçada. A invasão de missionários pregando seitas cristãs em aldeias têm convertido muitos indígenas e espalhado terror sobre as práticas espirituais ancestrais. O fundamentalismo cristão tem incentivado a prática inquisitorial em territórios indígenas. Lideranças têm sido acusadas de prática de feitiçaria, mulheres sendo chamadas de bruxas. Casas de reza tem sido destruídas através do fogo. Pessoas estão sendo queimadas vivas.

A situação das indígenas desaldeiadas foi mencionada mais de uma vez. Muitas são expulsas de seus territórios. Nas cidades, vivem um problema identitário: apesar de não serem mais reconhecidas como indígenas pelo seu povo, sofrem racismo fora da aldeia por não serem vistas como mulheres brancas. Situação parecida é vivenciada pelos povos indígenas que vivem nas fronteiras, que precisam provar que são indígenas e sofrem racismo sendo chamados de paraguaios fugitivos. As crianças que estudam nas escolas municipais ou públicas sofrem racismo por parte de outras crianças, pais, professores e gestores. Em alguns lugares um verdadeiro aparthaid escolar, visto que os indígenas são colocados em salas separadas, sob alegação de serem sujos. E não apenas na educação fundamental, também foi testemunhado graves situações de racismo sofridas pelos jovens que vão estudar nas universidades.

Tribunal das Mulheres na III Marcha das Mulheres indígenas. Foto: Lúcia Martins/AMB.

O modo de vida dos indígenas é ameaçado pelo “desenvolvimento”, inclusive o que se vende como “sustentável”. Ameaçados de invasão, os territórios indígenas, demarcados ou não, tem seu bioma, fauna, flora e população exterminadas. A hidrelétrica Itaipu, cuja construção épica no Rio Iguaçu demandou a destruição de uma cachoeira sagrada, além do alagamento de território sagrado indígena. A construtora assume que mais de 100 trabalhadores morreram durante a construção, mas nunca foi reconhecido o mal causado para a população indígena originalmente vivendo no local. A hidrelétrica Teles Pires também foi denunciada pelas mulheres Mundukuru. Ao denunciar a hidrelétrica, sustentavam o cartaz com os dizeres: “Estamos em defesa da nossa resistência. Viemos da mata, viemos do rio. Somos as guardiãs dos nossos lugares sagrados, somos mães, somos protetoras, somos guerreiras. E, todas juntas, vamos lutar pelos nossos direitos indígenas”.

Tribunal das Mulheres na III Marcha das Mulheres indígenas. Foto: Lúcia Martins/AMB.

“O Estado Brasileiro é culpado”

A partir da escuta dos testemunhos, um júri integrado por mulheres de referência no campo político, jurídico e de estudos sobre a questão elaboram uma sentença simbólica apresentando os elementos que condenam este modelo. Para este Tribunal, foram convidadas a jurista Deborah Duprat, a advogada indígena Judith Kari Guajajara, e a indígena graduada em direito Lucimara Patté, do povo Laklãnõ/Xokleng.  Você pode conferir a íntegra dos depoimentos no youtube da Articulação:

https://youtu.be/bScv9RXpYZY

A sentença, lida por Judith Kari Guajajara, foi a seguinte:

“O Tribunal reunido concluiu que o Estado brasileiro é culpado. Culpado por todas as vezes que, por ação ou omissão, cometeu, permitiu ou silenciou, que nossos corpos, nossas mentes e nossas identidades fossem violados por todos os corpos das mulheres e meninas indígenas violentadas ou contaminadas pelo garimpo ilegal e pelo mercúrio que contamina também o leite materno por todas as vezes e por todas as mulheres que quando chegaram a uma delegacia, não foram compreendidas em sua língua originária. Por todas as vezes que acionaram o canal de denúncia, não puderam ser atendidas de forma qualificada. O Estado brasileiro é culpado por tantos anos de silenciamento das nossas dores por promover o silenciamento daqueles que promoviam as nossas dores. O Estado brasileiro é culpado porque, em pleno século XXI, ano de 2023, nós não temos uma legislação específica para enfrentamento à violência contra as mulheres indígenas. O Estado brasileiro é culpado porque, por omissão ou ação, permitiu que diversas violências fossem empreendidas contra os nossos povos e continua permitindo isso. O Estado brasileiro é culpado.”

Tribunal das Mulheres na III Marcha das Mulheres indígenas. Foto: Lúcia Martins/AMB.

Acolhimento

A socióloga e articuladora política do SOS Corpo, Analba Brazão, apoiou a ANMIGA na elaboração do Tribunal. Como ela também acompanhou a elaboração da Lei Maria da Penha, enfatizou a importância dos testemunhos para a ampliação do sentido da violência contra as mulheres indígenas. Ao final da leitura das sentenças, ela foi convidada a subir no palco e puxar uma ação de acolhimento das testemunhas. Analba chamou as testemunhas para uma roda no centro da Plenária, e as mulheres participantes para uma roda de abrigo e proteção. Watatakalu , liderança feminina do povo Yawalapiti, do Alto Xingu, fez o cântico que entoou esse momento de refugo e abraços.

Tribunal das Mulheres na III Marcha das Mulheres indígenas. Foto: Patrícia Guajajara.