MANIFESTO – Por uma Política Nacional de Cuidados que enfrente as desigualdades pautada no Bem Viver

Construído por mais de 30 entidades e organizações feministas, de mulheres negras, da economia solidária, das lutas pelos direitos humanos, o Manifesto propõe um amplo debate sobre o cuidado, principalmente sobre que cuidado precisamos para reduzir as brutais desigualdades que vivemos como mulheres trabalhadoras, negras, periféricas, do campo, das aldeias, quilombos, das águas e florestas.

Quem somos?

Somos mulheres organizadas em movimentos diversos, aliadas e parceiras em muitas lutas. Desde o início deste novo ano e ciclo de esperança e de confiança na reconstrução do Brasil, nós temos nos reunido para refletir e elaborar conjuntamente o que deve compor uma política pública de cuidados, desde uma perspectiva feminista antirracista para o Bem Viver.

Por que?

Construímos este espaço porque queremos discutir a política nacional de cuidados, ser parte de sua elaboração e desenvolvimento. A história de luta dos movimentos feministas antirracistas e de mulheres negras tem denunciado insistentemente a divisão sexual, racial e social do trabalho. O trabalho doméstico e de cuidado realizado pelas mulheres, majoritariamente pelas trabalhadoras negras, periféricas, rurais, tem sido invisibilizado, desvalorizado, naturalizado e super explorado.

Denunciamos que a exploração do nosso trabalho doméstico e de cuidado se sustenta em relações de dominação/subordinação – gênero, classe, raça e etnia – que falseiam resultados macroeconômicos em termos de gasto, receita e endividamento públicos dentro da lógica da austeridade fiscal. Resultados falsos porque, como bem revela a economia feminista, escondem a imensa contribuição do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres e adolescentes. Segundo dados da OXFAM 2019, mulheres e meninas em todo o mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global. No Brasil essa realidade não é diferente, trata-se de uma enorme injustiça cometida contra as mulheres, desresponsabilizando as corporações empresariais, as finanças e políticas públicas das suas obrigações com a promoção da justiça e da igualdade para e entre as mulheres e com a garantia do direito das pessoas ao cuidado.

Como?

Reivindicamos pois, que o enfrentamento das desigualdades vividas pelas mulheres sejam elemento central não só da Política Nacional de Cuidados, mas também uma diretriz orientadora do novo Plano Plurianual 2024-2027 e de todo o Ciclo Orçamentário. Diretriz e política que reivindicamos sejam construídas com a participação dos movimentos de mulheres, feminista, antirracista, de trabalhadoras domésticas e cuidadoras. E, da mesma forma, sejam monitoradas e avaliadas em suas estratégias e metas, bem como na execução dos recursos públicos investidos para o seu desenvolvimento. Não faz sentido seguirmos aceitando uma política de cuidado onde continuemos sendo as exclusivas encarregadas dos cuidados, meros instrumentos para os fins dos outros, sem direitos nem reconhecimento.

Para quê?

Para promover a justiça e à igualdade, o enfrentamento da pobreza e da fome, nossos movimentos se articulam para exigir o indispensável reconhecimento e compartilhamento pelo Estado das atividades de reprodução social, possibilitando que o trabalho não remunerado, realizado na esfera doméstico-familiar e no âmbito comunitário quase que exclusivamente pelas mulheres, seja efetivamente assumido e reconhecido pelo Estado.

O cuidado é uma necessidade humana. Somamos nossas forças para assegurar a instalação de infraestrutura social do cuidado, em caráter prioritário, a responsabilidade do Poder Público com a garantia de direitos trabalhistas, previdenciários, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sobretudo e urgentemente para as mulheres racializadas, sujeitas a múltiplas formas de discriminação e exploração é indispensável.

É bom lembrar que durante a pandemia, predominantemente, fomos nós as mulheres, como ativistas, profissionais, ou como pontos fundamentais das redes de afeto e de solidariedade que garantimos a sustentação da vida nas nossas famílias e comunidades, tecendo e mantendo vínculos e coletividades, sustentando e construindo alianças para assegurar o cuidado indispensável à sobrevivência no cotidiano e para esperançar o Bem Viver.

Não custa lembrar que a primeira morte causada pela Covid-19 no Estado do Rio de Janeiro, foi de uma mulher negra trabalhadora doméstica de 63 anos, sua morte ocorreu pelas ausências de cuidados durante toda sua vida, incluindo direitos trabalhistas e previdenciários, o direito de ficar em casa em quarentena remunerada, protegendo sua saúde.

Não podemos esquecer que, nesse mesmo período, as mulheres foram gravemente afetadas pelo aumento da jornada de trabalho e sua precarização incentivada pela ausência do Estado, o crescimento do desemprego nas periferias pretas, o agravamento das violências a que mulheres e meninas ficaram expostas, presas em casa com seus agressores, sem qualquer investimento federal para abrir canais de denúncia e garantir mecanismos de proteção.

A realidade do trabalho das mulheres do campo, das florestas e das águas que cotidianamente enfrentam as adversidades em seus territórios, sacrificando a saúde física e mental para sobreviver à crise gerada pelo capitalismo extrativista que avança sobre os bens coletivos, causando desastres, envenenando a terra, a água os alimentos e a vida.

O que defendemos e reivindicamos:

É neste sentido que o feminismo antirracista que nos reúne nos organiza em luta contra todas as formas de opressão e exploração, para sustentar o debate sobre a criação da Política Nacional de Cuidados como política pública capaz de garantir às pessoas este direito e reduzir drasticamente as desigualdades sociais, de gênero, raça, etnia, de condição física e mental, geracional e tantas outras. Para que isso aconteça, é fundamental o fortalecimento de políticas públicas estruturantes como:

  • A ampliação da rede de educação em tempo integral com a garantia de oferta de atividades
    de esporte, cultura e alimentação adequada e saudável e o cumprimento das
    metas do Plano Nacional de Educação de, até 2024 disponibilizar 50% de vagas para
    crianças de 0 a 4 anos.
  • Na saúde, o fortalecimento do SUS voltado para linha de cuidados e prevenção às doenças
    em todas as fases da vida, buscando o acúmulo das políticas para as mulheres já
    preconizadas no PNAISM; na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
    (PNSIPN); Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi), entre
    outras, são políticas fundamentais para proteger populações e setores vulnerabilizados.
  • A geração de trabalho com direitos, o fortalecimento da economia solidária e feminista
    majoritariamente realizada por mulheres.
  • Políticas de habitação que contemplem o conceito amplo de morar viver e conviver,
    livres das violências na perspectiva de direito à cidade com mobilidade, saneamento
    e infraestrutura nos territórios.
  • É necessário assegurar acesso público à água potável, o direito à alimentação adequada
    e saudável; o fortalecimento da agricultura camponesa, das cozinhas comunitárias
    e a ampliação de restaurantes populares nas regiões em situação de vulnerabilidade
    e insegurança alimentar.
  • Assistência social com capacidade de acolher e atender a quem dela necessitar de
    forma articulada às outras políticas.
  • Criação de equipamentos públicos de convivência e cuidado para pessoas idosas.
  • Políticas públicas de atenção e cuidado com as pessoas com deficiência de todas as
    idades.
  • Instalação de infraestrutura pública social de cuidados, dirigindo e priorizando
    investimentos das agências de fomento (BNDES, CEF, Banco do Brasil entre outros) e
    recursos dos Orçamentos Públicos para o seu financiamento, bem como desenhando
    a política de geração de emprego para atender também a este objetivo.
  • Garantia de proteção trabalhista e previdenciária às trabalhadoras que vivem do trabalho
    informal, retomando esforços para o cumprimento dos direitos das trabalhadoras
    domésticas Articulação da Política Nacional de Cuidados às políticas de proteção da
    sociobiodiversidade porque são as mulheres negras, periféricas, camponesas e indígenas
    que são as principais vítimas das do racismo ambiental e das consequências
    do aquecimento global.

FÓRUM FEMINISTA ANTIRRACISTA POR UMA POLÍTICA NACIONAL DE CUIDADOS