Feminismo para pensar um Fórum Social Mundial mais Justo e Inclusivo

Por SOS Corpo

No dia 28 de janeiro de 2021, um coletivo de articulações compostas por organizações, entidades e grupos do movimento feminista de todo o mundo realizou o painel para discutir a potência do feminismo dentro do Fórum Social Mundial, processo realizado entre os dias 23 a 31 de janeiro deste ano de maneira virtual por conta da pandemia do coronavírus. O painel Feminismos e Dissidências Sexuais no FSM foi organizado pela Articulación Feminista Marcosur, AWID, CEAAL, CIRANDA, DAWN, Feminismos de Abya Yala, Nandita Gandhi,  REAS Red de Redes, REPEM, Nandita Shah e o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia.

No marco dos 20 anos do FSM, em meio a debates voltados para se pensar o sentido, fortalecimento deste espaço importante para difusão das pautas e lutas dos movimentos sociais de maneira internacionalista, bem como a sua ação no mundo, o painel convocado pela articulação dos movimentos feministas veio para iniciar uma campanha para ampliar a potência de ação do Feminismo nas instâncias do FSM. Mesmo estando presente na construção ao longo da história do Fórum, o Feminismo, enquanto sujeito político, ainda enfrenta um processo de muita luta para democratizar as instâncias internas do FSM, mas também para expandir a luta feminista integrada às demais causas presentes nos espaços de reflexão do Fórum por todo o mundo.

A campanha até o México 2022, local onde vai acontecer o próximo Fórum Social Mundial, vem no sentido de convocar um chamado para pensar um Fórum mais justo e inclusivo, fortalecendo o diálogo do Feminismo como sujeito político e uma ação transformadora com as pautas coletivas. Assim, o painel, além de refletir o lugar do Feminismo ao longo desses 20 anos de construção do FSM, apontou caminhos de fortalecimento e mobilização para o próximo encontro presencial, mas também para fortalecer a presença do Fórum pelo mundo, potencializando sujeitos, lutas e transformações sociais.

Maria Betânia Ávila, socióloga e pesquisadora integrante do SOS Corpo, acompanha o processo do Fórum Social Mundial desde a primeira edição, realizada em 2001. Compartilhamos abaixo, a íntegra da apresentação feita por ela durante o painel acima citado, onde a ativista feminista apresenta alguns caminhos de reflexão e ação em torno do chamado proposto pela campanha do movimento feminista para o FSM.

Feminismos e Dissidências Sexuais no FSM. Campanha até o México 2022: Um chamado para pensar um Fórum mais justo e inclusivo”

*Por Maria Betânia Ávila

O Fórum Social Mundial é um processo potencialmente de radicalidade porque nesse contexto estão presentes os movimentos que lutam contra todas as formas de opressão, exploração e discriminação, que trazem as contradições presentes na realidade social. Os espaços e processos dos grandes encontros do Fórum Social Mundial reúnem experiências muito diferentes e de diferentes temporalidades, desde a memória e práticas da ancestralidade dos povos originários aos problemas das formas de vida e as tragédias e resistências dos dias atuais.

Estamos aqui desde o seu início e somos construtoras do processo, nossas causas e nossas ações como sujeitos coletivos ainda não se expressam e não são devidamente reconhecidos na sua conformação geral. E temos questões e críticas ao processo.

Qual a relevância do movimento feminista nesse devir do FSM e qual a relevância do FSM para nossas causas e nossa força como movimento internacionalista?

O FSM cria alguma correlação de forças? Contribui para fortalecer e articular movimentos sociais nessa perspectiva de confortar essa ordem social mundial?

FSM, qual o efeito nas lutas e urgências de protestos nesse mundo tão desigual?

Um problema é um espaço/tempo dos movimentos sociais e não ser de fato permanentemente constituído por sua imensa pluralidade não apenas no momento dos grandes encontros, mas no processo que leva e dar sentido a esses encontros, sejam presenciais ou virtuais. Essa contradição é para ser enfrentada. Além disso para chegar até aqui, no momento dos grandes encontros, só faz sentido se o caminho FSM for pontuado de reverberações das lutas dos movimentos sociais no mundo de protestos de confrontos e apoios.

Ser confluência de forças vivas e autônomas, coletivos em confluência desde territórios e espaços locais e que se lançam na esfera da luta global. Sem enraizamento e mobilizações locais, o mundial se torna um discurso vazio e sem materialidade, isto é, sem movimento real, concreto dos sujeitos coletivos em suas lutas. Estamos sempre posicionadas localmente em relação aos lugares do mundo onde habitamos e lutamos. Não existe um espaço que o centro do mundo e os espaços outros que são locais do mundo. Não pode existir uma hierarquia espacial, é a confluência dos locais, todos centrais, que constitui a nossa internacionalidade. Como sujeitos coletivos somos ao mesmo tempo, locais e globais, e nessa dialética, de espaço e tempo, somos todas e todos sujeitos políticos coletivos centrais e principais.

O movimento feminista é sujeito constituinte desse Fórum, é parte do seu sentido histórico e precisa enfrentar o seu momento atual para ser parte de quem redefine seu caminho. E agora temos um caminho para o México e no México teremos um novo e grande encontro entre os movimentos que formam FSM. Não podemos perder o que acumulamos em um momento que precisamos tanto acumular forças, criar capacidade de analisar criticamente o mundo, confrontar os adversários e construir alternativas. E a realidade do mundo nos exige organização e lutas locais que se articulem no global. E isso necessita muita organização política e muita capacidade de criar escalas de articulações que possam desafiar os poderes que dominam o mundo. A defesa da vida é a urgência central, porque as contradições se revelam de fato como uma contradição entre “capital e vida” como diz Amaia Orozco. A destruição é a marca desse sistema como afirmava Marx, e como afirmamos nós, é um sistema capitalista, racista e patriarcal. E a pandemia é uma consequência desse processo de destruição permanente do planeta e de todas as formas de vida nele presente.

Precisamos pensar nesse processo que nos permite a confluência entre nós e a confluência de nós com os outros movimentos sociais. Uma questão desafiadora no processo do FSM é a relação entre autonomia, capacidade de ação e invenção de novas formas de organização democráticas, que não tenha como princípio organizador as velhas formas hierárquicas centralizadoras tão criticadas pelo feminismo justamente por formas amparadas em concepções de poder como hierarquia e submissão em sujeito político principal, luta principal e contradição principal. As contradições reveladas são muitas, e os sujeitos políticos são muitos e todos principais. Esse é um processo permanente e dialético.

O desafio é justamente essa nova relação, que pressupõe alianças, conflitos e acordos para caminhar numa direção. Enfrentar o conflito democraticamente é condição básica para a confluência ter escala de organização para o confronto lá fora. O conflito de ideias entre os movimentos sociais é um caminho para construir proposições coletivas, uma vez que o enfrentamento, marcado pelo antagonismo, não está nesta relação, mas fora dela, no confronto com o sistema de poder dominante.

A nossa crítica tem que se tornar conflito, presença política, compromisso. As estratégias se criam no diálogo, com conflito e reconhecimento da causa e da posição dos sujeitos coletivos com as quais nos articulamos.

Um processo dialético de superação, recuo avanço, reestruturação. A consciência crítica é fruto da ação, da participação, a reflexão coletiva, isto da práxis. É na luta e no processo de organização que surgem as propostas, não pode ser um modelo previamente preparada.

Nossa força como movimento feminista aqui ou em qualquer outro espaço nos exige ter forças articuladas, sermos muitas e sermos um movimento de todas as revoltas das mulheres, de todas as suas causas, das que já estão postas e das que vão surgindo, com a chegada de novas sujeitas. Vejo o movimento como um devir, que conserva a memória e se expande e avança no tempo e no espaço, que se interpela pela chegada das novas sujeitas e pelos problemas que nos desafiam a cada momento. Temos que nos revolucionar permanentemente para fazermos a revolução transformadora da vida social.

Quando estamos juntas na ação inventamos, criamos o que não estava previsto na teoria e muito menos o estava previsto em modelos fixos ditados por instâncias hierárquicas. Temos que ser fortes localmente, para sermos um movimento internacionalista em confronto com a ordem capitalista, racista, patriarcal, colonial, que se apresenta desde sempre como destruição, violação dos corpos e dos territórios, que se mantém pela dominação, pela exploração e pelo desapossamento.

A nossa grande e primeira conquista é o próprio movimento feminista, a organização das mulheres pela emancipação e transformação do mundo como sujeito da história. A nossa presença no mundo como sujeito político é nossa conquista primordial, é nossa fonte de liberdade, nosso caminho para emancipação coletiva e transformação social pelas quais lutamos. Para realizar essa conquista primordial mudamos nossas vidas e muitas morreram e nós choramos por essas que se foram e gritamos seus nomes em memória.

Se queremos o feminismo como um movimento revolucionário temos que ser radicalmente um movimento: Antipatriarcal, anticapitalista antirracista, anticolonial.

E se queremos construir aqui um espaço de ação e confluência entre nós, movimento feminista na sua imensa pluralidade e entre nós e os outros movimentos sociais temos que entender esse processo como um movimento dialético, temos que ser presença viva, forte e parte da sua definição, do seu conflito e da sua ação. E se o FSM quer de fato contribuir para um outro mundo possível, só o será com nós, sem nós não há outro mundo possível, e assim o FSM tem que ser antipatriarcal, anticapitalista, antirracista e anticolonial.

Vamos ao México juntas. Contribuindo para transformar o FSM, seus processos e suas instâncias de coordenação, para sermos mais fortes para transformar o mundo.

*Maria Betânia Ávila, SOS Corpo Instituto Feminista pela Democracia, Articulação de Mulheres Brasileiras e Articulação Feminista Marcosur