Entenda porque o caso de repercussão geral no STF pode definir o futuro das terras indígenas

O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, hoje (30/6), o julgamento que definirá o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no Brasil.

Por APIB

Do que trata o RE 1.017.365?

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. O território em disputa foi reduzido ao longo do século XX e os indígenas nunca deixaram de reivindicá-lo. A área já foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.

Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?

Em decisão do dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a “repercussão geral” do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Judiciário.

Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre TIs que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.

Quando e como ocorrerá o julgamento?

O julgamento está pautado para o dia 30/6. Ele ocorrerá virtualmente, com apresentação oral dos votos, possibilidade de debate e transmissão pela TV Justiça. Não há garantia de que o julgamento seja concluído na data prevista. Há outros itens na pauta do STF. Além disso, antes dele ser iniciado, o presidente da corte ou o relator pode retirar o processo de pauta. Outra possibilidade é o pedido de vista, que pode ser feito por qualquer ministro. Aquele que fizer a solicitação deverá devolver os autos para prosseguimento da votação, no prazo de 30 dias (prorrogável por mais 30 dias), contado da data da publicação da ata de julgamento. Ocorre que nem sempre o prazo é respeitado e alguns processos ficam parados por anos. Os prazos também serão suspensos durante o recesso do STF.

O que está em jogo?

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem do período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito “originário” – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição ao garantir aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Do outro lado, há uma proposta restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”.

Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso da TI Raposa Serra do Sol (RR) e que igualmente restringem a posse e o usufruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.

O que é marco temporal?

O marco temporal é uma tese jurídica que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988. Alternativamente, se não estivessem na terra, teriam que comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material na mesma data de 5 de outubro de 1988.

A tese é perversa porque legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988!”.

Os povos indígenas participarão do julgamento?

O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam num processo, subsidiando o tribunal com informações. Mais de 50 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no caso, entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas. Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele.

Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?

Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rejeite definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.

As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.

Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar as usurpações e violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.

Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho de terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.

Além disso, há referências de povos indígenas isolados ainda não confirmadas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, abrindo a possibilidade do extermínio desses povos.

Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.

O julgamento pode afetar os povos indígenas isolados?

Os povos indígenas isolados também podem ser impactados pela tese do “marco temporal”. Isso porque, em muitos casos, seria difícil ou até impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras onde hoje habitam, o que inviabilizaria a demarcação de seus territórios. O Estado brasileiro até hoje desconhece a existência dessas comunidades.

Não é razoável exigir que, numa data específica, esses povos estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento e regularização de seus territórios. Por outro lado, a comprovação de que se encontravam em situação de conflito deflagrado tampouco é tarefa fácil em vista da perseguição e ocultação de sinais da sua presença por invasores e da omissão do Estado em protegê-los.

Foram vítimas notórias desses problemas os Canoê, Akunt’su e o “Índio do Buraco” (RO); os Piripkura Kawahiva e Kawahiva do Rio Pardo (MT), por exemplo. No último caso, a Funai só recebeu informações sobre a presença de povos indígenas isolados no final dos anos 90. A interdição da área foi feita em 2001 e o processo de demarcação se estendeu até a declaração da área como Terra Indígena em 2016.

Dos 115 registros da presença de indígenas isolados no Brasil, 86 ainda não foram confirmados – ou seja, caso sua existência venha a ser confirmada, ainda não se sabe ao certo qual é o território tradicionalmente ocupado por esses grupos.

Destes 86 registros não confirmados, 35 se encontram fora de terras indígenas reconhecidas, em alguns casos em áreas pressionadas pela realização de atividades ilícitas, por empreendimentos de infraestrutura, pela expansão do agronegócio e pelo proselitismo religioso. Essas pressões também incidem sobre terras indígenas reconhecidas. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), há 115 registros da presença de indígenas em isolamento no país, apenas 29 deles confirmados, outros 26 registros estão em estudo e 60 são informações coletadas pela Funai.

Um levantamento do ISA identificou 56 obras de infraestrutura em operação impactando 28 TIs, 13 Unidades de Conservação (UC) federais, 4 UCs estaduais e 5 áreas sem proteção, onde estão localizados 67 registros de povos indígenas isolados – 9 confirmados, 15 em estudo e 44 informações ainda não confirmadas.

A ideia usada por ruralistas para defender restrições às demarcações de que há “muita terra para poucos índios no Brasil” faz sentido? As terras indígenas tomam terra disponível da agropecuária brasileira?

Considerando o conjunto de serviços ecossistêmicos providos pelas TIs, elas são fundamentais para a manutenção da agropecuária brasileira.

Além disso, não é verdade que há “muita terra para pouco índio” no Brasil, isto é, não se pode afirmar que as demarcações comprometem o estoque de terras disponíveis para a produção rural.

Considerando os processos de demarcação já abertos na Funai, quase 14% do território brasileiro hoje está contido em TIs, mas mais de 98% da extensão total dessas áreas está na Amazônia Legal, grande parte em regiões remotas e sem vocação agrícola ou pecuária. Fora da Amazônia, onde está a maior parte do PIB agropecuário, as TIs ocupam algo como 0,6% do território. Em contrapartida, segundo o IBGE (2017), 41% de todo o território brasileiro é ocupado por estabelecimentos rurais privados.

Além disso, há uma enorme discrepância na distribuição da população das TIs. Das 517,3 mil pessoas que moravam nessas áreas protegidas conforme o Censo IBGE de 2010 (último dado oficial disponível), 62% estavam na Amazônia Legal, enquanto os outros 38% espremiam-se nos 2% restantes da extensão total das TIs localizados fora dessa região, o equivalente a menos de 21 mil km2, ainda considerando os processos de demarcação já abertos na Funai.

Em alguns dos estados mais importantes para o agronegócio, a extensão de terra ocupada pelas TIs é insignificante em relação ao território total, a exemplo de São Paulo (0,3%), Minas Gerais (0,2%) e Goiás (0,1%), igualmente levando em conta os procedimentos demarcatórios já abertos na Funai. Onde os conflitos de terra são mais intensos, a extensão total das TIs também não alcança 1% do território, como na Bahia (0,5%), Santa Catarina (0,8%), Rio Grande do Sul (0,4%) e Paraná (0,6%). No Mato Grosso do Sul, o percentual é de 2,4%.
]
Enquanto isso, o Brasil é um dos campeões mundiais de concentração de terras. Pouco mais de 1% do número total dos estabelecimentos rurais (51,2 mil estabelecimentos) detém 47% da área total dos estabelecimentos rurais ou quase 20% do território nacional, o equivalente a 1,6 milhão de km2.

Fontes: IBGE e ISA.

Qual a importância ambiental e climática das Terras Indígenas?

Além de serem indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, as TIs têm papel fundamental na conservação ambiental. As grandes extensões de vegetação nativa conservadas nas Terras Indígenas são responsáveis pela manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação climática e do regime de chuvas, a manutenção dos mananciais de água, a estabilidade e fertilidade do solo, controle de pragas e doenças, entre outros. Todas essas funções são benéficas não apenas à agricultura e à pecuária, mas também à manutenção da indústria e das cidades.

Esses territórios são os mais preservados entre as áreas oficialmente protegidas pela legislação, sendo reconhecidos pelas pesquisas como as principais barreiras contra o desmatamento e o avanço da fronteira agropecuária. Na Amazônia, cerca de 98% de sua extensão total está preservada. Fora da região, em geral as TIs abrigam o pouco de vegetação nativa que restou.

Os territórios indígenas resfriam a superfície e influenciam as circulações atmosférica e oceânica globais, ajudando a baixar a temperatura do planeta. Por exemplo, a substituição das florestas para o cultivo de pastagens ou culturas agrícolas resulta em um aumento de temperatura regional de 6,4 oC e 4,2°C, respectivamente. Como consequência, ocorre uma variação no ciclo hídrico regional, que coloca em risco a qualidade de vida, a agricultura e a pecuária.

As diferenças entre áreas dentro e fora do Território Indígena do Xingu (TIX), no nordeste do Mato Grosso, por exemplo, podem chegar a um intervalo entre 4 oC e 8 oC, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Fora da TI, é mais quente por causa do desmatamento.

Cerca de 5,2 bilhões de toneladas de água são transpiradas diariamente pelas árvores existentes nas TIs da Amazônia. Para comparação, o volume despejado no Oceano Atlântico pelo Rio Amazonas é de pouco mais de 17 bilhões de toneladas por dia. O volume de água fornecido pelas florestas das TIs amazônicas daria para encher diariamente quase 80 vezes todas as caixas d’água do Brasil.

Na Amazônia brasileira, as comunidades indígenas protegem e manejam áreas que armazenam 27% dos estoques de carbono da região, o que representa aproximadamente 13 bilhões de toneladas. Esta quantidade não considera o carbono armazenado no solo, que possui, em média, um estoque entre 40 e 60 toneladas por hectare. Esta retenção do carbono pelas florestas ajuda a conter o acúmulo de CO2 na atmosfera, com efeitos positivos na redução do aquecimento global.

Fontes:
IPAM (2015). Terras Indígenas na Amazônia Brasileira: reservas de carbono e barreiras ao desmatamento.
Nobre, A.D. (2014). O Futuro Climático da Amazônia – Relatório de Avaliação Científica. São José dos Campos, ARA Ed., CCST-INPE – INPA.